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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Um novo começo

Foto: Adriana Marques























Era o último dia daquele ano. Um ano muito estranho, aliás. Ano de muito tumulto no mundo, no país, na sua vida. Ainda no início de dezembro, ela já começara a rever seu trajeto naquele ano que não foi, nem de longe, o melhor ano da sua vida. Apesar de tudo, tudo o que aconteceu nele foi fundamental, gerou muito aprendizado, e só por isso ela já podia ser grata.

Foi um ano amargo, em que ela chegou à terrível conclusão de que não fazia a mínima ideia do que ela realmente queria para si e que os rumos que sua vida vinha tomando não eram exatamente o que ela imaginava e não a deixavam tão feliz como gostaria.

Quando se chega a uma conclusão como essa, é natural que se comece a querer achar culpados e ela não ficou imune a isso. Se sua vida havia chegado àquele estado caótico, tinha que haver um culpado. E lá saiu ela, apontando o dedo para o trabalho, para o trânsito, para o tempo que não tinha, para o cansaço, para o dinheiro que nunca dava, até as pessoas que ela mais ama no mundo sofreram acusações, muitas delas guardadas em seus pensamentos, algumas poucas gritadas repentinamente numa explosão de raiva que sempre terminava em lagrimas. É porque ela sempre guardou muito suas emoções.

Demorou um pouco pra ela perceber que a culpa que insistia em colocar em tudo e todos era única e inteiramente sua  e que culpar o outro, fechar a cara e ficar reclamando era uma forma muito fácil de fugir do problema. Quando ela se deu conta que o motivo da sua vida ter tomado aquele rumo estranho, diferente dos sonhos que ela pintou na infância, era fruto das escolhas que ela fez ao longo da sua trajetória, ela enfim entendeu a sua responsabilidade nisso tudo, embora no fundo, no fundo, ela já soubesse disso há muito mais tempo.

Só que dessa vez, ao invés de ficar se lamentando e chorando pelo que tinha feito com a sua vida, esperando um milagre acontecer, ela resolveu criar coragem, sair do seu casulo e começar a agir em busca de uma vida com mais significado, uma vida que fosse o reflexo de sua própria essência, uma vida mais leve e ao mesmo tempo mais intensa - leveza para dar a devida atenção aos detalhes; intensidade nas emoções e experiências para tornar cada dia uma nova descoberta.

E, timidamente, a mudança foi tomando forma ao longo do seu dezembro reflexivo. A amargura foi se dissipando e, em meio às experiências não tão boas daquele ano, ela começou a se lembrar de quantos momentos bons ela viveu ao lado dos seus: o aconchego da casa dos pais nos almoços de domingo; os encontros deliciosos com as amigas da vida, este ano mais frequentes e mais intensos, um fortalecer de laços pra vida inteira; os pedais de domingo, que a levaram a desbravar caminhos desconhecidos, a ter contato com lugares incríveis, a subir montanhas que ela jamais se imaginou capaz de subir, a se surpreender a cada pedal com as maravilhas do Criador - a brisa no rosto, o céu azul, as águas da chuva, a terra firme, as curvas tortuosas, as árvores, as flores, a beleza a explorar todos os seus sentidos; ah, a delícia dos finais de semana tranquilos em casa com ele, seu companheiro e amante da vida inteira, deitados no sofá assistindo as séries preferidas, brincando com as emoções pela película de um filme delicioso, fazendo o almoço ou qualquer lanchinho juntos, sonhando juntos o futuro de suas vidas; a viagem incrível das férias, que sonharam e planejaram juntos, escolhendo o roteiro de cada dia só com sua intuição e se surpreendendo, positivamente, com cada experiência do lugar; os pedais solitários em que só existia ele, ela e a estrada, um incentivando o outro, apoiando e esperando o outro, apreciando juntos cada quilômetro percorrido, cada surpresa do caminho, mesmo que fosse um trajeto conhecido; e ela percebeu, enfim, que a base do seu casamento não são as grandes demonstrações de amor, mas o companheirismo, a parceria, a compreensão e gestos simples de carinho e afeto, todos os dias, e que mesmo que um tropece nesse caminho, um jamais desiste do outro.

Daria para escrever páginas e páginas com esses momentos, pequenas dádivas divinas que ela se deu conta ao final daquele ano e pelos quais ela agradeceu imensamente, não sem antes pedir perdão a Deus, ao Universo e a si mesma por ter gastado tanto tempo e energia naquele ano dando mais importância àquilo que lhe faltava do que às bençãos que já possuía.

Ela se redimiu e no último dia do ano, renasceu em um novo eu. Um eu disposto a fazer diferente, e assim o fez naquele último dia. Ela estava de folga, poderia aproveitar mais a cama, mas decidiu pular da cama bem cedo, junto com ele, que estava já se preparando para sair para o trabalho. Enquanto ele se arrumava, ela fez o seu lanche - um pão com manteiga e uma goiaba. Como ainda era cedo, ele resolveu tomar o café em casa. Colocou a água na leiteira, ferveu, coou seu café preto de todo dia e tomou a bebida quentinha, acompanhada do pão que ela havia arrumado.

Enquanto ele tomava o café, ela foi para o banho. Ah, como é bom um banho logo pela manhã. Revigorante e inspirador. Lembrou-se que sonhara durante à noite com uma pessoa em especial, alguém que não vê há algum tempo, que talvez nem volte a ver na vida, mas que há quatro anos lhe ensinou lições que transformou profundamente a sua forma de ver a vida, ensinamentos que são, em parte, influência de suas transformações vividas hoje.

Depois que ele saiu para o trabalho, ela continuou o seu dia; lavou e guardou as louças da pia, guardou sapatos que estavam espalhados pela casa, tomou seu café com calma, pensativa, planejou o que faria no almoço e decidiu a sobremesa para a reunião de mais tarde na casa da sogra, tudo aproveitando alimentos que tinha em casa, para não desperdiçar nadinha. E, enfim, foi cuidar de si.

O que normalmente seria um dia preguiçoso, à espera passiva do ano novo, ela quis transformar em um dia ativo, um novo começo, para que o ano termine em movimento. Por mais simples que possam parecer essas atividades, para ela tem um valor inestimável, tendo em vista que estas coisas também estavam meio perdidas na sua rotina caótica, deixando de ser feitas muitas vezes por pura preguiça. Então, se é para mudar, que se comece pelo simples, abrindo espaço em sua própria casa e em seu coração para que o novo faça morada e não vá embora nunca mais.

Que no novo ano, cada dia seja um novo começo, um novo renascer, uma nova descoberta, uma nova experiência. Que estar em movimento seja a engrenagem da vida, e que a transformação interior experienciada no ano que se passou se ramifique, se frutifique, se alastre por onde ela passar.

Gratidão é o que eu sinto por tudo o que vivi, sejam experiências boas ou ruins, e que meu recomeço simples desse dia seja o impulso de todos os dias desse novo ano. Paz, harmonia e muito, muito amor, é o que eu desejo para mim, para você, para o mundo.